Você sabe o que é jornalismo lento?

Você sabe o que é jornalismo lento?

29 de junho de 2017 1293 Por michelleprazeres

A ideia de jornalismo lento é menos um “conceito” e mais uma “proposta de mirada”, que nos desafia a sofisticar o olhar para as práticas de comunicação e detectar nelas aspectos de desnaturalização e descolonização da lógica da velocidade.

Por Michelle Prazeres*

Ainda que Megan Le Masurier, em seu artigo “What is Slow Journalism afirme (em tradução livre minha) que “o termo slow é mais uma crítica aos efeitos da velocidade no jornalismo do que uma miríade de possibilidades que devem se tornar um checklist para verificar se uma ou outra mídia se encaixa nesta noção”, no estudo que venho desenvolvendo no Centro Interdisciplinar de Pesquisa (CIP) da Faculdade Cásper Líbero, estou buscando construir minimanente uma tipologia que apoie a reflexão sobre esta prática jornalística.

 

Antes de compartilhar o primeiros achados da minha pesquisa neste artigo, gostaria de ponderar sobre duas questões fundamentais relacionadas ao jornalismo lento (ou slow journalism): 1) trata-se de um expoente do slow movement movimento amplo de desaceleração da vida, que teve seu início com o slow food (relacionado à comida) e vem ganhando corpo ao redor do mundo em diversas frentes da vida e da existência, como as cidades, a medicina, a moda, entre outras; 2) não se trata de uma tendência, nem tampouco de uma nostalgia no que diz respeito à sua relação com o jornalismo “hard news”, “breaking news” ou ao jornalismo supostamente veloz, fragmentado e frenético da contemporaneidade. O jornalismo lento existe e sua relação com o jornalismo “rápido” é dialética, mas a razão de sua existência não é o combate à velocidade; e sim a busca por oferecer alternativas de produção e consumo de informação para quem quer fazer isso obedecendo a outros processos, que dão origem a outros produtos e a outros tipos de recepção e engajamento.

 

As perguntas que parecem mover a criação de um campo de prática e reflexão para o jornalismo lento dizem respeito, claro, ao cenário de saturação e excesso de informação em que vivemos: de quanta notícia eu preciso? Quando eu preciso? E o que realmente importa nas notícias? Supostamente, para o jornalismo lento, a informação que importa pode chegar na próxima semana ou no próximo mês, em geral, quando há tempo para digerir e interpretar.

 

Mas afinal, o que é o jornalismo lento?

 

No Brasil, as discussões sobre o jornalismo lento em ambientes digitais parecem estar circunscritas a um debate sobre o formato e as linguagens do jornalismo e as possibilidades de um jornalismo mais aprofundado na rede, como, por exemplo, os debates sobre o formato LongForm. Trata-se de uma visão do jornalismo lento como uma mídia para ser consumida lentamente.

 

No entanto, acredito que a lentidão (e seus aspectos) se aplicam também a outras etapas do processo jornalístico e não apenas à recepção: o slow pode estar também no processo de produção e em algumas características do produto jornalístico.

 

A velocidade no jornalismo sempre foi um argumento basicamente comercial, relacionado ao fetiche do furo. Como valor-notícia, a velocidade passou a fazer ainda mais sentido depois do advento das tecnologias, pois dar uma notícia primeiro em tempo real é um dos aspectos considerados para a construção e a afirmação de um veículo noticioso, na relação com sua audiência e com eventuais apoiadores.

 

O slow não se trata necessariamente de desmontar esta tese ou de desmerecê-la. Trata-se sobretudo de questioná-la, de ponderá-la e de oferecer, na prática, alternativas de jornalismo complementares a ela. Em tempos de fragmentação e brevidades e da disputa de atenção a qualquer custo, em que jornalismo e entretenimento competem e muitas vezes se misturam em nome de um suposto engajamento, o slow é a busca pelo contexto, pela compreensão e pela credibilidade.   

 

A partir de leituras que fiz por conta da pesquisa (você encontra algumas referências abaixo), busquei elencar características do que seria este jornalismo lento, no que diz respeito a pelo menos três aspectos do processo jornalístico: (1) produção; (2) produto; e (3) recepção.

 

Produção Produto

Recepção

OBJETIVIDADE E IMPARCIALIDADE

Transparência (Le Masurier)

FORMATO

LongForm (Le Masurier)

Aposta no poder da narrativa (Le Masurier)

StoryTelling (Le Masurier)

São mídias sociais (Manifesto)

ENGAJAMENTO / CONEXÃO

Relevância a uma comunidade (Le Masurier)

Distribuídas por recomendações não-publicitárias (Manifesto)

TEMPO

Tempo para encontrar informações (Le Masurier)

São atemporais (Manifesto)

Jornalismo do presente (Maria Margarida de A Silva)

CONTEÚDO

Histórias de interesse humano (Le Masurier)

Busca histórias não contadas (Le Masurier)

RELACIONAMENTO

Compreensão (Le Masurier)

São discursivos e dialógicos (Manifesto)

QUALIDADE X VELOCIDADE

Privilegia o contexto, a qualidade, a exatidão, a precisão e a investigação (Le Masurier)

Visa a perfeição e torna a qualidade palpável (Manifesto)

Abre mão do fetiche do furo (Le Masurier)

Reflexividade (Maria Margarida de A Silva)

COLABORAÇÃO

Enxerga a audiência como colaboradores (Le Masurier)

Ativa prosumers (Manifesto)

QUEM FAZ?

Funciona com colaboração (Le Masurier)

Inteligência coletiva

Promove monotarefas (Manifesto)

CREDIBILIDADE

Se apoia na credibilidade (Le Masurier)

Respeito aos usuários (Manifesto)

Aposta na confiança e na credibilidade (Manifesto)

Emanam uma aura especial (Manifesto)

ORIENTAÇÃO POLÍTICA

Contribuição para a sustentabilidade (Manifesto)

São progressistas e não reacionários (Manifesto)

Independente e alternativo (Le Masurier)

RELEVÂNCIA

Foco no local (Le Masurier)

Pequena escala (Le Masurier)

Ethos de comensalidade (Le Masurier)

Estes são alguns dos primeiros achados da minha pesquisa, que eu compartilho aqui com vocês. A busca segue, no sentido de compreender como estas categorias dialogam com o que propõe o Manifesto Slow Media e se existem veículos brasileiros praticando o jornalismo lento.

 

Outro ponto de foco da pesquisa é compreender o suposto paradoxo do fato de a prática e o consumo do jornalismo lento ganharem cada vez mais espaço nas redes tecnológicas, espaço à primeira vista, essencialmente veloz. No entanto, é justamente o excesso que produz uma busca pela lentidão. E é justamente a característica abertura e infinitude do espaço da rede; somada ao seu potencial de colaboração e conexão que cria um ambiente fértil e favorável para as práticas alternativas lentas.

 

As redes, a despeito de serem consideradas o espaço da velocidade por essência, parecem ser o terreno mais fértil para semear as resistências lentas no jornalismo.

 

Espero que a minha pesquisa possa contribuir para o enriquecimento desta discussão. E caso você tenha alguma sugestão ou colaboração, ficarei grata de receber. 😉

Uma outra forma de mostrar os achados da pesquisa é este mapa mental, que desenhei com alguns elementos do jornalismo lento; relacionados a aspectos do jornalismo; e costurados por referências bibliográficas (em azul).

 

* Michelle Prazeres é jornalista, Mestre em Comunicação e Semiótica e Doutora em Educação. É professora dos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Jornalismo e pesquisadora do Centro Interdisciplinar de Pesquisa da Faculdade Cásper Líbero.

 

ALGUMAS REFERÊNCIAS SOBRE O TEMA

 

A revisão da notícia web: um embate entre velocidade e qualidade. Luiza Muzzi Almeida.

Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/cadernoscespuc/article/view/P2358-3231.2015n26p205

 

What is Slow Journalism. Megan Le Masurier.

Disponível em: http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/17512786.2014.916471

 

Slow Journalism Movement. Maria Margarida de Andrade Silva.

Disponível em: http://margaridaandradesilva.weebly.com/uploads/2/8/5/9/28594141/slow_journalism_movement_-_margarida_andrade_silva.pdf

 

O lugar do longform no jornalismo online. Qualidade versus quantidade e algumas considerações sobre o consumo. Raquel Ritter Longhi e Kérley Winques.

Disponível em: http://www.compos.org.br/biblioteca/compos-2015-3c242f70-9168-4dfd-ba4c-0b444ac7347b_2852.pdf

 

Manifesto Slow Media.

Disponível em: http://www.desacelerasp.com.br/2017/03/22/manifesto-slow-media-em-portugues/

 

OUTRAS REFERÊNCIAS SOBRE JORNALISMO EM AMBIENTES DIGITAIS

 

FORD, Sam; GREEN, Joshua; JENKINS, Henry. Cultura da Conexão. Editora Aleph, 2014.

 

JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph, 2008.

 

LEMOS, André. Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea. Porto Alegre, Editora Sulina, 2004.

 

MARTINO, Luis Mauro Sá. Teoria das mídias digitais. São Paulo: Vozes, 2014.

 

PRADO, Magaly. Webjornalismo. Rio de Janeiro: LTC, 2011.

 

PRIMO, Alex. Interações em rede. Editora Sulina, 2013.

 

SALAVERIA, Ramon. WebJornalismo: 7 Caraterísticas que marcam a diferença.

Disponível em: http://dadun.unav.edu/bitstream/10171/37153/1/Multimedialidade_informar_para_cinco_sentidos__Salaverria_2014.pdf