Relatório final de pesquisa de pós-doutoramento
Em agosto de 2021, finalizei a minha pesquisa de pós-doutoramento no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica (PEPGCOS/PUC-SP). “COMUNICAÇÃO E CULTURA SLOW: Uma reflexão sobre práticas jornalísticas em tempos de aceleração generalizada.
Compartilho aqui a Introdução do relatório final.
A contemporaneidade está repleta de práticas sociais que podem ser observadas e analisadas pela perspectiva da aceleração / desaceleração da comunicação. Se mirarmos as expressões sociotécnicas (em uma perspectiva funcionalista-midiática), é possível observar na hiperinformação, na desinformação e na infoxicação sintomas do excesso na produção, na circulação e no consumo de informações. Alguns exemplos destas práticas são os conteúdos clickbait, as brevidades, as notícias compartilhadas apenas por seus títulos ou os portais que passaram a avisar seus leitores sobre o tempo estimado de duração para a leitura de um determinado conteúdo.
Se – inspirados no que sugere Sodré (2014) –, olharmos para a comunicação como ação organizadora e mediadora do comum nas relações humanas, é possível detectar o aumento da velocidade em cenas cotidianas, como no gesto de acelerar um áudio enviado por uma plataforma de conversação instantânea ou de acelerar a experiência de assistir a vídeos[1]; ou na atitude de aumentar a velocidade de uma aula gravada (o que se tornou um hábito em contexto de ensino emergencial remoto durante a pandemia de Covid-19)[2]. Percebe-se também a aceleração da experiência humana e do ritmo de vida se manifestarem em síndromes e doenças cuja incidência aumenta cada vez mais, como a depressão, a ansiedade, o estresse e o burnout.
Se lançarmos nossa mirada para ambientes sociais, como o do trabalho, é possível perceber evidências da aceleração na ausência da cooperação e da comensalidade, na deterioração do senso de comunidade, nas lógicas de produtividade e produtivismo e na necessidade que vem se impondo de as corporações pensarem em programas de saúde para seus funcionários, por conta de o trabalho ter se tornado uma esfera totalizante. A sigla ESG (Environmental, social and corporate governance, em tradução livre: “Ambiental, Social e Governança”) se converteu em uma verdadeira “febre” no universo corporativo ao sugerir que as empresas devem dispor de políticas internas de “responsabilidade social” e governança, relacionadas a seus funcionários e ao relacionamento com clientes[3].
Na educação, por sua vez, registram-se o estresse e a superocupação docente, a valorização da multifuncionalidade, a reverência ao desempenho e à competição, o louvor ao ensino multidispositivos, a glorificação da conectividade, o apreço ao aluno “empreendedor de si” enquanto algumas das reverberações da aceleração provocada, especialmente, pela adesão às tecnologias.
Todas estas manifestações dão notícias de um tempo. E de uma moral que caracteriza este período. E de valores epocais que regulam as práticas sociais neste momento.
A velocidade foi alçada à condição de valor na contemporaneidade. Normalizada e normatizada, especialmente, pela relação com as tecnologias e pela indexação promovida pela cibercultura.
Tendo em vista estas manifestações e uma concepção ampla de comunicação, esta investigação buscou iluminar aspectos da relação entre a velocidade e a aceleração das práticas sociais comunicativa, tendo como ponto de partida o jornalismo slow. Buscou-se caracterizar este fenômeno não como forma de fundamentar uma técnica, mas sobretudo como modo de problematizar uma prática; prática esta, que se apresenta como possibilidade para o jornalismo na relação com tempo e as temporalidades.
Nos empenhamos em um trabalho teórico, de avaliação de exemplos empíricos emblemáticos para fundamentar a argumentação. É possível ser slow em condição cibercultural? Nos espaços-tempo indexados pelo híbrido real-virtual? Faz sentido mobilizar a categoria slow para pensar no jornalismo em contexto dromocrático?
A intenção da crítica é sempre a de acordar pessoas e produzir gente alerta. E, para dar conta desta tarefa, é preciso lançar mão de estratégias de nomeação conectadas com o espírito da época.
No percurso de construção dos parâmetros que caracterizam o jornalismo slow, esta pesquisa foi marcada por um ponto de inflexão. O mapeamento de características que deu origem a uma classificação e a um diagrama de atributos da prática slow se mostrou inoportuna.
Localizou-se um incômodo com a propositura epistêmica contida em uma noção (a ideia de jornalismo slow) que pareceu ser “um beco sem saída”, uma falsa questão preliminar ou uma pergunta metodológica que geraria mais desconfortos (do que possíveis assentamentos) para a pesquisa. Coube-nos enfrentar a questão e mostrar o contrário.
Por um tempo, fez-se o esforço de tentar salvar um objeto empírico: o jornalismo que seria slow. No entanto, percebeu-se que a melhor atitude seria a de desver o objeto, buscando cercá-lo no sentido inverso da tipificação. Como este jornalismo identificado como slow e que se realiza em temporalidades diferenciadas se situaria na lógica da dromocracia cibercultural? Qual seria a significação social histórica de existir um jornalismo slow na era da velocidade?
Debruçamo-nos, então, em continuidades e tensões que pudessem nos mover neste novo terreno, tendo agora o jornalismo slow como porta de entrada para a reflexão sobre a comunicação para além de suas manifestações sociotécnicas; e compreendendo a classificação como uma etapa necessária de pesquisa, no entanto, inoportuna enquanto resultado, pelo fato de não alcançar todo problema ao se concentrar nas resultantes sociotécnicas de um fenômeno que demanda compreensão mais ampla, em conexão com a época dromocrático-mediática (cibercultural).
Mas o slow não é um jornalismo crítico? Não é o mesmo que o new journalism? Não se confunde com jornalismo literário? Estes foram alguns dos incômodos manifestados em momentos de trocas e exposição da primeira fase desta pesquisa, quando o objeto de diálogo era a classificação e a tipificação do slow journalism. E talvez o jornalismo slow guarde múltiplos pontos de contato com todas estas “modalidades” ou vertentes do jornalismo.
A partir desta constatação, passamos a entender que o slow é uma categoria social histórica importante. A relação do social histórico com a linguagem é uma relação modificadora do próprio fenômeno. Por outro lado, o fenômeno eleito como objeto de estudo em um determinado tempo é animado por este social histórico. Tendo em vista que este social histórico é vivo, os elementos que o compõem são dinâmicos. Sendo assim, alguns fenômenos podem ser “resgatados” e serão ressignificados e atualizados de acordo com o repertório de outra época. Isso aconteceu com o jornalismo que seria slow. Do ponto de vista “concreto”, ele pode ser o mesmo jornalismo praticado em outras épocas; do ponto de vista reflexivo, ele ganha atualidade quando pensado na perspectiva da aceleração / desaceleração, tendo em vista a velocidade como violência de época, incorporada via regime dromocrático.
Ainda que a prática jornalística possa guardar características conservadas no tempo, não se trata de um saudosismo, uma anacronia ou uma nostalgia. Pelo contrário: uma vez localizado no tempo de duração da pesquisa, o objeto é arejado pelo social histórico do presente em questão. Quando (re)nomeado por um novo contexto social histórico, embora pareça ser o mesmo, o fenômeno já não o é. Tudo é específico ao tempo que passa.
A especificidade social histórica hoje do jornalismo slow – à diferença da especificidade social histórica do jornalismo lento de décadas passadas – diz respeito, portanto, à velocidade alçada à condição de valor normalizado, normatizado e desejado na contemporaneidade. Leia-se: a peculiaridade epocal é a dromocracia. Se o fast se impõe como lógica totalizante do capitalismo avançado, o slow se apresenta como categoria que pode representar um “dique de contenção” à força da onda aceleratória e enquanto atitude dromoresistente possível.
Sabe-se que se trata de um terreno movediço e ambivalente. No entanto, acredita-se que a imprecisão é o celeiro da reflexão em ciências humanas e este foi o ponto de partida para o caminho de recorte e apreensão do objeto. No coração da complexidade, é que se declara a intenção desta pesquisa, relatada com transparência e honestidade neste Relatório. Antes de ser uma mera questão que envolve uma definição, o tema desta investigação envolve uma profunda experiência sociocultural mergulhada em sua época.
A definição da questão, portanto, mais do que do nome “jornalismo slow”, abrange todos os aspectos estruturais que implicam uma relação com a época dromocrático-mediática, hoje em sua vertente cibercultural.
[1] A tendência foi tema de reportagem do jornal O Estado de São Paulo em Agosto de 2021. A pesquisadora concedeu entrevista ao jornalista autor da matéria “De WhatsApp a Netflix, consumo de conteúdo acelerado vira tendência em uma sociedade com pressa” (disponível aqui).
[2] A tendência foi tema de reportagem da Revista Veja em Maio de 2021. A pesquisadora concedeu entrevista à jornalista autora de “Com mais aulas gravadas, cresce a turma que assiste à lição no modo rápido” (disponível aqui)
[3] A pesquisadora registrou impressões sobre o assunto no ensaio “Não basta ser capitalismo consciente; a prática precisa ser consistente”, disponível aqui. Também coordenou a edição de dossiê temático sobre o assunto no segundo número da Revista de divulgação científica Communicare.