A “volta pós-pandemia” como sintoma da aceleração
Faz algum tempo que quero escrever sobre isso.
Sobre algo que me incomoda desde 2021, quando começamos a chamar o que estamos vivendo de “volta”, “retorno”, “pós-pandemia” e afins.
Acho que vale começar lembrando que no começo deste mês de maio, a OMS declarou o encerramento da emergência de saúde pública que não representa o fim da pandemia de Covid-19. E por que estamos chamando de volta desde 2020?
Entendo que a expressão se refere às medidas de isolamento social. E ao fim das restrições mais severas, que nos impediram de nos encontrarmos presencialmente por tanto tempo (e entendo igualmente que em alguns lugares e especialmente para algumas classes sociais, a realidade do isolamento foi bem diferente e muitas pessoas nem chegaram a ter a possibilidade de trabalhar remotamente ou de se afastar de seus locais de trabalho).
Nesta época, me incomodava, particularmente, a expressão “volta às aulas”, porque estava atuando como docente e tinha a sensação de que tinha trabalhado mais do que nunca e esta expressão “borrava” isso, dando a ideia de que professores e professoras não estavam trabalhando, estudantes não estavam estudando e as aulas estavam “interrompidas”. Este papo rende uma reflexão à parte, porque o mundo da educação viveu suas particularidades durante a pandemia e segue vivendo.
Fato é que a expressão “volta da pandemia” colou.
Assim como “colaram” outras aberrações, como a expressão “novo normal”.
Passei um tempo tentando entender o que me incomodava precisamente. E acho que resolvi compartilhar, quando compreendi que chamar o momento em que estamos vivendo de “volta” me incomoda, porque me parece uma estratégia de apagamento do que estamos atravessando.
Desde que resolvemos chamar de “retorno” e retomar gradualmente em modalidade presencial as “atividades” (especialmente as atividades produtivas), o que tenho observado é desumano. Sabemos que não estamos bem de saúde mental, mas seguimos buscando atingir metas. As pessoas estão exaustas, cansadas, irritadas, menos propensas ao diálogo e à compreensão, menos disponíveis e dispostas para o Outro. Muito mais aceleradas. Muito mais isoladas em suas individualidades.
Sabemos que estamos exaustos, mas seguimos cedendo à narrativa de que ficamos “dois anos parados”. Sabemos que este período foi de trabalho exasperante para a maior parte das pessoas, sabemos que foi ainda pior para mulheres mães. Sabemos que a experiência da pandemia foi atravessada por marcadores sociais (e quanto mais marcadores, mais as pessoas passaram por sofrimento psíquico do qual não cuidamos). Sabemos que nossas crianças viveram experiências que podem marcá-las para o resto da vida, no que diz respeito à educação, à socialização, às possibilidades de brincar e fluir, à relação com familiares e amigos, à saúde mental e tudo mais.
Para mim, estas coisas são tão evidentes, que acho de uma violência imensa este nome que demos a este período. Volta.
Não estamos voltando para lugar nenhum. Nunca voltaremos a ser quem éramos antes disso tudo. A quem interessa chamar de “volta”? A quem interessa que esta volta seja baseada nessa sanha produtivista?
Ao chamar de volta, descuidamos.
Ao chamar de volta, ignoramos.
Ao chamar de volta, invisibilizamos.
Chamar de volta é estratégia de apagamento de tudo que atravessamos.
Precisamos de tempo para elaborar, digerir, viver, pensar sobre o que experimentamos neste período. Mas parece que o mundo não quer permitir esta reflexão.
Provavelmente, porque se pararmos para pensar, veremos que tem muita coisa errada nesta concepção de desenvolvimento, progresso e avanço que está colocada – e que é a força que move este “retorno” apressado.
Não voltamos.
Nem voltaremos.
Estamos vivendo um agora sem nos permitir cuidar de nossa humanidade, porque estamos acreditando que precisamos apenas seguir correndo.
Precisamos seguir de fato.
Mas é possível seguir sentindo, permitindo, acolhendo, refletindo, dando nomes ao que experimentamos e cuidando.
É preciso desacelerar para cuidar do que nos tornamos e estamos nos tornando.