Do individual ao coletivo: do bem-estar ao bem viver

Do individual ao coletivo: do bem-estar ao bem viver

22 de setembro de 2023 Off Por michelleprazeres

Talvez seja mais fácil identificar “sintomas” de bem-estar e saúde mental nos indivíduos: ter uma alimentação saudável, praticar exercícios físicos, dormir bem são alguns exemplos que costumo ouvir quando pergunto o que é bem-estar para as pessoas.

Mas precisamos parar para pensar na forma como construímos a nossa percepção sobre o bem-estar, centrada no indivíduo, fragmentada e, portanto, elitizada. Historicamente, ao compreender o bem-estar como questão individual, atribuímos às pessoas a responsabilidade pelo seu próprio bem-estar. Ou seja: compreendemos o bem-estar como escolha.

Aí eu pergunto: quem, em sã consciência, escolheria não desfrutar de uma boa saúde mental, de cuidado e de bem-estar? Então, qual é o sentido de pensarmos que se trata apenas de escolha?

O bem-estar, a saúde mental e a qualidade de vida de uma pessoa estão intrinsecamente relacionados com a sua condição que, por sua vez, incide sobre a sua própria percepção de bem-estar. Ou seja: sua realização depende de fatores sociodemográficos, econômicos, sociais e políticos; e também de fatores relacionais (dos grupos nos quais esta pessoa está inserida).

Acesso a direitos básicos como educação, saúde, moradia, saneamento, água, transporte, segurança, liberdade de crenças, liberdade de orientação sexual, acesso a tecnologias, acesso a emprego e renda entre outros estão no âmbito de fatores socioeconômicos que influenciam o bem-estar e a saúde mental das pessoas.

O ambiente de convivência (que pode ser pessoal, familiar ou de trabalho), a sensação de pertencimento, a possibilidade de participação, o acesso a espaços de convivência, a possibilidade de criar vínculos, o tempo disponível para relações afetivas, o grau de diversidade e de integridade dos espaços pelos quais a pessoa circula podem ser alguns fatores relacionados a um âmbito mais “social”, organizacional ou comunitário do bem-estar.

E, por fim, a autoestima, o tempo livre, a sensação de felicidade, de motivação, de disposição, de otimismo, de tranquilidade e mesmo as questões de saúde física estão entre alguns aspectos que podemos observar no âmbito individual.

Claro que não listei todos os “indicadores” do que seria uma vida plena com acesso a cuidado, bem-estar e saúde mental, mas a ideia é indicar aqui um caminho de reflexão, para que possamos expandir o pensar sobre este tema, sob a luz de que não faz sentido pensarmos que basta a pessoa querer, que ela vai conquistar um estado de bem-estar. Para que isso aconteça para todos/as, precisamos de transformações culturais e sistêmicas.

Como falar em bem-estar individual, quando 9 em cada 10 pessoas se preocuparam com sua saúde financeira pelo menos uma vez nas últimas duas semanas? Como pensar nisso, quando 43% das pessoas no Brasil pensam que estão vivendo a vida na velocidade x 2 e 9 em cada 10 afirmam não conseguir acessar um estado de calma? Como fazer isso, quando constatamos que o esgotamento afeta mais as mulheres? Quando, entre as brasileiras, quase metade (45%) possui um diagnóstico de ansiedade, depressão ou algum outro transtorno mental? Como podemos atribuir apenas aos indivíduos a busca pelo bem-estar quando estudantes e pessoas ocupadas com tarefas domésticas possuem índices de saúde mental inferiores ao de pessoas que não estão nesta condição? Ou em um país em que 5% das pessoas acessam psicoterapia, mas 17% tomam medicação? Quando apenas 23% da população empregada está engajada no trabalho, por conta de ambientes tóxicos e insustentáveis de trabalho?

Três em cada dez pessoas no Brasil se sentem ansiosas, têm problemas com sono e com a alimentação. No entanto, apenas 7% avalia a sua saúde mental como ruim ou péssima. Ou seja: existe um descompasso entre os sintomas vividos e a percepção do próprio estado e da própria condição.

Será que o fato de o Brasil ser um dos países com maiores taxas de ansiedade e burnout e com uma baixa percepção desta realidade não tem nenhuma relação com nossa extrema desigualdade?

Precisamos começar a jogar luz sobre esta conversa e a boa notícia é que estamos começando a fazer isso com a abertura, a generosidade, a informação qualificada e a cautela que este tema pede.

Talvez para responder à pergunta do título deste artigo, precisaremos de tempo, investigação, parâmetros e de uma visão (re)contextualizada do assunto a partir da nossa realidade desigual.

Por enquanto, na minha percepção, é possível afirmar e apontar esta reflexão sobre o bem-estar para o pensamento sobre o bem viver. O “Bem Viver” é uma visão – uma vivência – de comunidades que se organizam a partir do coletivo. É um modo de vida “em pequena escala”, baseado em relações de produção autônomas, renováveis e autossuficientes, na definição de Alberto Acosta.

Trata-se de “uma alternativa sistêmica que visa garantir uma vida digna para todos e a própria sobrevivência da espécie humana e do planeta”, questionando o conceito eurocêntrico de bem-estar.

“Muitíssimas pessoas só trabalham e produzem pensando em consumir, mas, ao mesmo tempo, vivem na insatisfação permanente de suas necessidades. Produção e consumo se tornam, assim, uma espiral interminável, esgotando os recursos naturais de maneira irracional e acirrando ainda mais a tensão criada pelas desigualdades sociais. Nesse ponto, desempenham papel determinante muitos avanços tecnológicos que aceleram o círculo perverso de produção crescente e apetites cada vez mais vorazes.”

– Alberto Acosta

* Estas reflexões são fruto da minha pesquisa sobre indicadores de bem-estar, saúde mental e felicidade existentes no mundo e da minha participação no The WellBeing Summit, evento que aconteceu em São Paulo e Sorocaba (SP) esta semana.

Alguns dados aqui mencionados foram compartilhados no evento. Estes e alguns podem ser encontrados nas seguintes fontes:

Panorama da Saúde Mental no Brasil (Instituto Cactus): https://www.panoramasaudemental.org/

Pesquisa Modo acelerado – a relação do brasileiro com o tempo (Instituto Datafolha / Eisenbahn): https://www.eisenbahn.com.br/modoacelerado

Esgotadas (Think Olga): https://lab.thinkolga.com/esgotadas/

Boletim Desacelera – Setembro amarelo, alerta vermelho: https://www.linkedin.com/pulse/boletim-desacelera-setembro-amarelo-alerta-vermelho-desacelerasp/?published=t

Imagem: recorte da capa do livro “O bem viver”, de Alberto Acosta.