Qual o papel da comunidade escolar no mundo hiperconectado?
Vocês já perceberam como estamos todas/os/es meio perdidos quando o assunto é a relação com o universo das tecnologias e as crianças, adolescentes e jovens?
Essa semana aconteceu algo curioso. Eu comecei a semana facilitando uma roda de conversa sobre o papel da escola e da comunidade escolar no mundo hiperconectado em uma escola privada na Zona Oeste de São Paulo; e terminei a semana oferecendo uma formação para docentes e gestores/as escolares da Rede Municipal de Quadra (SP), município de pouco mais de 3 mil habitantes, segundo o Censo de 2022.
De Quadra a São Paulo, a angústia de professoras/es, gestores/as e famílias é semelhante: estamos assistindo a crianças, adolescentes e jovens mergulharem (serem mergulhados?) no universo das tecnologias e das redes sociais e não sabemos muito bem como podemos agir para mediar, estar perto, proteger, enfim, exercer nosso papel de adultos seja no lugar de família ou de ambiente educativo ou escolar destas crianças.
Neste artigo, eu quero fazer algumas ponderações e recuperar uma discussão para propor, essencialmente, que devemos pensar em soluções coletivamente, devagar, juntos e colocando as crianças no centro.
Um breve resgate
Vivemos algumas “fases” em relação às tecnologias na educação na América Latina. Primeiro, estávamos focados nos recursos técnicos e era preciso aprender sobre as tecnologias (em cursos de informática, lembram?); depois, com a chegada da internet pra uso civil, era preciso aprender com as tecnologias; nos anos 2000, a ênfase muda, sobrepondo-se à inclusão (vivemos os programas de um dispositivo por aluno, por exemplo); E, depois, com o fenômeno das redes sociais (e da desinformação), passamos a olhar para o problema de forma mais integrada, buscando aprender junto e apontando para a noção de cidadania digital.
Acontece que o fenômeno atual, da plataformização da vida, requer de nós uma nova “fase”: um olhar para os valores, a cultura, as práticas, os hábitos, os conteúdos e as estruturas (materiais e mentais) que adentraram as vidas das crianças e que não dizem mais respeito aos dispositivos. Já estão “instaladas” nos corpos e corações destas crianças: a velocidade é um destes aspectos (escrevi sobre isso neste artigo, publicado na Revista Comunicação & Educação, da ECA-USP).
Em 2013, defendi meu Doutorado chamado “A moderna socialização escolar: um estudo sobre a construção da crença nas tecnologias digitais e seus efeitos para o campo da educação” (Dá para ler a tese aqui). Resumidamente, pesquisei o que a mídia, o poder público, as empresas e a Universidade falam sobre as tecnologias. E constatei que todo mundo estava falando a mesma coisa. Salvo alguns focos de resistência, o que mapeei foi o que chamei de “orquestração simbólica”, uma espécie de louvor às tecnologias, que implicava, do ponto de vista concreto, na adoção de suas “ferramentas” de forma “natural” nos espaços educativos. No campo da educação, ainda havia um coro que dizia “é a tecnologia que vai modernizar e salvar a educação”. Isso é resultado da minha pesquisa, onde analisei documentos e discursos.
Passaram-se alguns anos e estas tecnologias foram adentrando o espaço escolar como se fossem apenas instrumentos (estou generalizando, mas existem uma série de iniciativas que buscam mapear formas emancipatórias e usos cidadãos. É que elas não são eu foco aqui).
Enfim, chegamos em 2023, quando um relatório da UNESCO demonstra preocupação com as tecnologias – em especial o celular – e recomenda uma educação centrada no ser humano. (Dá para ler o relatório aqui).
Dez anos depois…
Entre 2013, quando defendi minha Tese, e 2023, quando a UNESCO lança este alerta, passaram-se 10 anos. São 10 anos de trabalho das BIG Techs, levando a tecnologias para todos os espaços e reforçando a narrativa de que a tecnologia é algo muito legal, que facilita as nossas vidas. Acontece que nestes dez anos, vivemos muitas coisas em relação a este universo – inclusive eleições influenciadas pelo sistema de controle e manipulação de conteúdos e comportamentos que se tornaram as plataformas. E agora já temos condição de olhar para tudo isso e pensar que talvez tenhamos errado a mão.
Estávamos nos aproximando de uma certa “sobriedade digital”, como diz o bielorrusso Morozov, quando veio a pandemia e as tecnologias “salvaram” a sociabilidade e a educação (vejam, estou novamente generalizando e trazendo aqui as matizes relacionadas às lacunas de acesso. Estou falando, do ponto de vista de uma “grande narrativa” no “imaginário popular”, em que isso ficou mais ou menos sedimentado: “se não fossem as plataformas, teria sido pior”.
Aí, chegamos no momento atual, em que conteúdos, comportamentos, estruturas e saberes entram nos espaços de convivência e escolares (induzidos ou conduzidos por estes dispositivos tecnológicos) e não sabemos muito bem o que fazer com eles.
Entendo a escola como o lugar da educação, do espanto, do estranhamento, da crítica, do olhar que acha estranho e quer entender tudo que vê (e o que não se vê). Não existe uma regra a respeito de ter ou não ter os dispositivos tecnológicos na escola. Cada escola, cada rede, cada sistema é vivo e está em um contexto que oferece pistas para entendermos se os aparelhos fazem ou não sentido ali.
Acesso universal + Direito à desconexão
Mas tenho a impressão de que não podemos mais olhar para as tecnologias apenas como este olhar de proibir o aparelho ou proporcionar o aparelho. Tudo que sabemos sobre tecnologia sofre grande influência do que o Vale do Silício produziu sobre tecnologias. Precisamos de novos repertórios, novos nomes, novas perguntas, novos saberes. E eles não virão de um pensar tecnicista e prático. Virão com mergulhos, reflexões profundas, olhares contextualizados. Virão de um fazer junto, devagar e com diálogo.
Virão do olhar para este universo que se apresenta nesta espécie de “currículo oculto”, clandestino, sub-reptício, que está transformando e acelerando a vida de nossas crianças, expondo a situações e conteúdo impróprios, introduzindo a questões relacionadas a violências e concorrências às quais elas não deveriam ser expostas precocemente. E, por fim, está sequestrando os corpos destas crianças, docilizadas pelo consumo nas telas e das telas (e aqui, de novo, generalizo, correndo o risco de não dar conta de contextualizar com a devida profundidade os contextos em que a tela é apoio educativo para mães solo ou famílias que precisam desta ajuda para dar conta de suas crianças. Meu foco aqui é o papel da escola no diálogo com as famílias, olhando, inclusive, para estes contextos familiares sempre que possível).
A briga é por acesso universal e direito à desconexão ao mesmo tempo. A briga é por alguma autonomia em relação a esta construção tão impenetrável das empresas de tecnologia. A construção precisa partir da realidade de cada escola, cada rede, cada grupo.
Esperanço que cada escola, cada rede, cada comunidade, cada sistema possa pensar nesse assunto junto, devagar e com diálogo, colocando estas crianças, adolescentes e jovens no centro, criando espaços de partilha, construção, mediação e proteção. Para que possamos, daqui a mais dez anos, dizer que caminhamos rumo à construção de estratégias de letramentos digitais que nos tornaram mais felizes e saudáveis.