Por que as plataformas digitais produzem vergonha e o que isso tem a ver a aceleração?

Por que as plataformas digitais produzem vergonha e o que isso tem a ver a aceleração?

8 de junho de 2024 Off Por michelleprazeres

“Os mecanismos em rede da vergonha atiçam conflitos e aceleram sua propagação. Com a comunicação instantânea de hoje, as pessoas têm menos tempo para acompanhar os novos padrões e ajustar suas crenças e comportamentos. Isso produz uma infelicidade intensa, além de fricção social. Como é de se esperar, a vergonha alimenta tal desconforto. Ela é a força que impulsiona as pessoas a se adaptarem às expectativas da sociedade”.

A afirmação é da pesquisadora estadunidense Cathy O’Neil em “A máquina da vergonha: quem ganha na nova era da humilhação” (Editora Rua do Sabão, 2023). Em sua nova obra, a autora do best seller “Algoritmos de Destruição em Massa” aprofunda a noção de vergonha como ferramenta de policiamento e o papel das redes digitais na potencialização de suas engrenagens e efeitos.

Ela demonstra como a vergonha é fabricada e explorada como força global usada para coletar das pessoas algo de valor (seja dinheiro, trabalho, sexo, votos ou interações), partindo da premissa de que o principal propósito da vergonha é reforçar a conformidade e “enquadrar” as pessoas.

Ao lançar luz para os motores da máquina da vergonha, O’Neil nos encoraja como pessoas e coletivos, grupos e organizações, a atuar para desmontar estas máquinas que “vem fazendo o que querem como nossas mentes e espíritos, mas também como o governo e a economia”. “Precisamos encarar e combater as poderosas indústrias da vergonha, porque elas perpetuam status quo disfuncionais e lucram com eles”.

Capa da obra de Cathy O’Neil

E o que isso tem a ver com a aceleração?

A aceleração social do tempo é um fenômeno que se encontra engendrado nas dinâmicas sociais. Ela abarca a aceleração técnica, das transformações sociais e do ritmo de vida (segundo o estudo do sociólogo alemão Hartmut Rosa).

Desta forma, a aceleração é uma espécie de coração (ou seria o sistema nervoso?) da máquina da vergonha, impulsionando, potencializando e aumentando a dimensão, o volume e o tamanho de suas consequências.  

Na obra de O’Neil, esta relação intrínseca entre as máquinas de vergonha e a aceleração aparecem em algumas passagens.

Primeiro, fica evidente que as plataformas digitais transformam o fenômeno humano da busca por comunidade e aceitação em algo muito mais frenético. Acelerando os tempos das relações humanas, as “fases” dos processos de vergonha passam mais rápido e sem tempo para respiro dão passagem para outros fenômenos como a “Cultura do cancelamento”.

Segundo, quando a autora afirma que a “empatia requer tempo e atenção” e que a vergonha é um mecanismo de distração. “Quando nos deparamos com um problema, uma saída fácil nos é oferecida repetidas vezes”. Nas redes digitais, a produção intencional da vergonha como mecanismo de policiamento é um dos insumos para a fabricação da distração, que tem efeitos na pisque das pessoas no que diz respeito à condição de construir comunidade. A produção do individualismo e da fragmentação da vida faz com que fiquemos muito menos dispostos a entender o Outro como igual. E sem capacidade de empatia, nos entregamos a conteúdos vexatórios sem pensar que estas máquinas estão produzindo formas de enquadramento sofisticadas e perversas.

O filósofo sul coreano Byung-Chul Han afirma que onde há espírito de comunidade não é preciso fabricar empatia. Hoje, o que vivemos é a necessidade de reconstruir empatia, pois perdemos completamente o senso de comunidade. E isso não é exatamente uma consequência “espontânea” da vida digital. É possível olhar para a fabricação do desinteresse e da desatenção como projeto das plataformas digitais, interessadas na propagação de conteúdos que – independentemente de ferirem a dignidade humana ou de promoverem a desinformação – geram fenômenos de propagação que, por sua vez, alimentam altos sistemas de lucratividade.

A autora afirma: “Essa é a natureza de plataformas automatizadas regidas por algoritmos de aprendizado de máquina. Se o objetivo do sistema é maximizar tráfego e receitas, ele automaticamente distribui e alavanca informação que leva a mais cliques, comentários e compartilhamentos”.

Um terceiro aspecto da obra de O’Nel relacionado ao tempo e à aceleração é o etarismo como dimensão da máquina da vergonha para vender produtos e comportamentos da “indústria do bem-estar”; e um quarto, a análise que ela traz sobre o olhar para o mundo a partir da ideia de que todo mundo pode escolher. E – a partir deste entendimento – a responsabilização individual das pessoas por questões que são coletivas.

Se o oposto da vergonha é a confiança e a dignidade, eu diria que só vamos recuperá-las se resgatarmos nossa soberania temporal e da atenção. Se resistirmos à cultura, aos ritmos e ao frenesi em suspensão ou à paralisia frenética (como afirma Byung-Chul Han) das redes digitais.

>> Na minha pesquisa científica, eu faço um convite a pensarmos nas relações entre tecnologias e aceleração social do tempo, partindo da premissa de que a cultura digital não está presente apenas na camada de conteúdo, para a qual costumamos olhar. Ela tem camadas físicas, de infraestrutura e também camadas imateriais, ou seja: culturais. Está impregnada na nossa psique e tem acelerado processos sociais e trazido para ambientes de relações humanas (família, escola, trabalho, etc) aspectos que não enxergamos e que eu nomeio de “currículo oculto”. Ou seja: as tecnologias não só nos ensinam, mas nos condicionam a sermos acelerados, desatentos, desinteressados pelo Outro e assim por diante. Existem conteúdos e comportamentos que estão sendo propagados por estas tecnologias e para os quais não estamos necessariamente atentos.

Escrevi sobre isso aqui.

Publiquei um artigo científico sobre isso aqui.

E minha Tese de Doutorado é sobre esse mecanismo no campo da Educação.