Não descolonizaremos afetos sem descolonizar o tempo
Uma resenha de “Descolonizando afetos: experimentações sobre outras formas de amar”, de Geni Nuñez, em diálogo com a crononormatividade e a aceleração.
Quanto mais mergulho no universo da não monogamia, mais desconfio da relação intrínseca entre esta estrutura de dominação e crononormatividade que regula a nossa relação com o tempo.
Em “Descolonizando afetos: experimentações sobre outras formas de amar” Geni Nuñez desvela alguns mitos sobre monogamia, poligamia, poliamor, amor livre, relação aberta e outros termos que, ao serem lançados de forma banal na roleta da desinformação, são apropriados para justificar práticas sem honestidade intelectual e sem responsabilidade afetiva.
Duas chaves são importantes nesta leitura: a primeira é que usamos o termo monogamia de forma equivocada. A origem dele está no ideal de que devemos ter apenas uma pessoa parceira ao longo da vida (aos poucos, foi sendo ressignificado para a ideia de que podemos – e devemos – ter um por vez, o que altera a dimensão temporal da monogamia do “até que a morte o separe” para o “exclusivo enquanto dure”). A segunda, espelho desta: usamos o termo poligamia para nos referirmos (pejorativamente) a quem se relaciona com mais de uma pessoa.
Acontece que esta denominação contém vários equívocos. Especialmente, quando entendemos a monogamia como um dispositivo social, político e econômico de colonização dos afetos, que conectado à religião, à legislação e às violências – em especial de gênero, mas também de raça e orientação sexual – serve à manutenção de estruturas sociais conservadoras e violentas.
“Os prefixos de monogamia (mono-) e poligamia (poli-) podem aludir, em um primeiro momento, a uma questão de quantidade, como se monogamia fosse pertinente a quem quer se relacionar com apenas uma pessoa e poligamia se referisse àquelas pessoas que desejam se relacionar com várias. Esse é um dos equívocos mais comuns, justamente porque nem monogamia é sobre um/único nem não monogamia corresponde necessariamente a vários. Na não monogamia, alguém que queira se relacionar com apenas uma pessoa tem o direito de fazê-lo, mas isso diz respeito apenas a si mesmo”, afirma Nuñez.
A psicóloga Marcela Aroeira (@amores_plurais) explica de forma simples o encadeamento destas relações: “a não monogamia não se define pela quantidade de relações que uma pessoa vive ao mesmo tempo. A monogamia é uma estrutura social, não é uma escolha pessoal ou relacional. Ela é uma ferramenta política de controle que, ao longo da história, tem sido usada para regular corpos, especialmente os corpos femininos. Tem sua raiz nas dinâmicas de poder estabelecidas pelo patriarcado. Historicamente, a exclusividade sexual tem a ver com o controle das mulheres para garantir a linhagem familiar e preservar propriedades privadas. A não monogamia tem a ver com a liberdade de escolher como viver as próprias relações, sem estar preso a uma estrutura construída para limitar escolhas e reforçar desigualdades. A não monogamia propõem que as relações sejam construídas com base na liberdade e no consentimento, sem a pressão de se conformar a uma norma que, no fundo, serve mais ao controle social do que ao bem-estar individual”.
Sigamos esta lógica: monogamia é um dispositivo de controle. Mas foi historicamente apropriado pela lógica do amor romântico e da família tradicional para reforçar sistemas de dominação. Convém atribuir ao amor apenas aquela relação afetivo-sexual-amorosa que atende a estes apelos. Convém que não reconheçamos outras relações como amorosas. A não monogamia crítica, portanto, ao questionar todo este pacote, afirma que amores são plurais e amamos mais de uma pessoa ao mesmo tempo e isso não tem nada a ver com promiscuidade ou necessariamente com ter mais de uma parceria sexual. Isso tem a ver com reivindicar a descolonização de nossos afetos.
Ao nomear deste modo seu trabalho, Nuñez dialoga com bel hooks ao questionar por que consideramos apenas as relações em que há vínculo sexual e/ou romântico como relações.
Em “Tudo sobre o amor: novas perspectivas”, hooks sistematiza sua vasta pesquisa sobre o amor a partir da compreensão de que ele é uma ação, uma emoção participativa. Ou seja: ele é uma prática. A ideia de uma “ética amorosa” que a autora apresenta me lembrou muito a noção de amorosidade em Paulo Freire. Para hooks, abraçar uma ética amorosa significa utilizar em nosso cotidiano todas as dimensões do amor: cuidado, compromisso, confiança, responsabilidade, respeito e conhecimento. E isso só é possível por meio do cultivo da consciência.
Confundimos o amor com o amor romântico por estarmos impregnados – no nosso processo de construção da concepção do amor – de estruturas machistas patriarcais reprodutoras da dominação. “Para amar, é preciso abrir mão do desejo de poder”, ela diz. Ela trata do amor em relacionamentos românticos, mas sobretudo do amor em sua forma estendida: na comunidade, na família ampliada, nas amizades. Em 13 capítulos, ela fala sobre a clareza (colocar o amor em palavras, as palavras certas); justiça (lições do amor na infância); honestidade (é preciso ser verdadeira no amor); compromisso (que o amor seja amor-próprio); espiritualidade (o amor divino); valores (viver segundo a ética amorosa); ganância (simplesmente ame); comunidade (uma comunhão amorosa); reciprocidade (o coração do amor); romance (o doce amor); perda (sobre a morte); cura (a redenção pelo amor); e destino (quando os anjos falam de amor).
Nuñez nos lembra: “uma pessoa ser não monogâmica significa simplesmente que ela não terceiriza decisões sobre seu próprio corpo, de maneira que pode usar a liberdade de escolha inclusive para não se relacionar sexualmente com ninguém”; ou para se relacionar com apenas uma pessoa.
E o que tudo isso tem a ver com o tempo? Tudo.
Os regimes coloniais e colonizadores se reforçam entre si, demandando que o movimento pela descolonização seja também integrado.
Não descolonizaremos afetos sem descolonizar o tempo.
Um dos pilares da monogamia é a divisão social do trabalho e a atribuição social do trabalho do cuidado para as mulheres.
Enquanto as mulheres exercem jornadas triplas, os homens são socialmente autorizados a exercer outras atividades. Isso é uma disputa também temporal.
“É curioso quando dizem que mulheres mães, por exemplo, não teriam tempo para serem não monogâmicas, quando é justamente pela estrutura da monogamia e da misoginia que este tempo lhes “falta”. No sistema capitalista em que vive a sociedade dominante, o casamento heterossexual monogâmico ocupa um lugar fundamental. Diversas pesquisas têm pontuado que ser uma mulher casada em uma relação heteronormativa acrescenta dezenas de horas de trabalho semanais a estas mulheres”.
“O acúmulo de tarefas que o sistema monogâmico, misógino, capitalista atribui às mulheres é o que lhes “tira” o tempo, não só para ter outros vínculos afetivo-sexuais, mas para ter um espaço para o descanso, o lazer, para se dedicar a projetos pessoais, organizações coletivas e assim por diante. A não monogamia crítica nos chama a atenção para a redistribuição das tarefas de maneira coletiva, para quem ninguém seja sobrecarregado pela exploração de seu tempo”.
Para descolonizar afetos, precisamos descolonizar o tempo, porque a apropriação do tempo exclusivamente para o que é útil, produtivo e alimenta os sistemas de tecnologia, consumo e trabalho faz com que tenhamos cada vez menos tempo disponível para os afetos, a construção de vínculos e a comunidade. “Acredito que nossa ideia de tempo, nossa maneira de contá-lo e de enxergá-lo como uma flecha – sem indo para algum lugar – está na base do nosso engano, na origem de nosso descolamento da vida”, afirma Ailton Krenak.
A colonização do tempo é a ideia de que ele é um recurso e, portanto, pode ser usado e gerenciado. Essa noção ocidentalizada de que o tempo só anda para a frente está na origem das noções de avanço, progresso, desenvolvimento e crescimento que nos trouxeram até aqui.
Precisamos aprender com as noções de tempo dos povos indígenas, originários e africanos, que olham para o tempo não como linear, mas como espiralar, circular, cíclico.
As alternativas sistêmicas e o bem viver mostram que desacelerar não é uma escolha individual, mas sim a única saída que temos como civilização.