“A substância” pelas lentes do tempo e da aceleração
A Substância (The substance)
Diretora: Coralie Fargeat
(Não leia se ainda não viu o filme. Adianto alguns aspectos que podem ser “spoilers”).
Assisti ao polêmico “A substância”. É um filme bom ou ruim? No grupo de pessoas com quem assisti, não chegamos a um consenso. Algumas gostaram muito e outras acharam bizarro do começo ao fim. Este texto é inspirado nas nossas trocas, que agradeço <3
Eu comentei com o pessoal que achei o filme tão ruim, que é bom. Penso que se vencermos o primeiro impulso de avaliar com o foco apenas estético (ok, admito que algumas cenas eu não consegui ver até o final, detestei o design de som que explora sonoridades de gosmas e talvez eu demore alguns anos para conseguir comer frango assado novamente) , o filme cumpre uma missão importante de agendar com muito sarcasmo vários temas relevantes da contemporaneidade.
E me pegou quando percebi que é também um filme sobre o tempo. Não somente sobre o tema mais evidente e óbvio do filme, que é o etarismo / ageísmo e os padrões forjados pela ditadura da indústria da beleza, especialmente no que diz respeito às mulheres, claro (o tratamento que o filme dá a esta agenda é tão caricato, que se aproxima muito do absurdo do real).
O filme é sobre o tempo, quando dura duas horas e trinta minutos e tem uma velocidade de tirar o fôlego. No final, algumas cenas poderiam ser o “ápice” ou desfecho, mas não são. O filme “não sabe parar”, como li nesta crítica. A velocidade de tirar o fôlego e o “não saber parar” também podem ser uma metalinguagem para sugerir que – regulados pela lógica neoliberal e em busca da melhor versão de nós mesmos – é assim que agimos.
O filme é também sobre o tempo quando toda premissa do equilíbrio está assentada em uma demanda pela alocação adequada de tempo. As personagens precisam obedecer a um regime temporal rigoroso de uma semana. Infringindo essa regra, ocorre uma punição irreversível. O argumento “oculto” para mim aqui é o mito neoliberal de que basta se organizar, que é possível cumprir as regras de tempo impostas pela sociedade.
Sabemos que isso não é possível. Diante da primeira tentação de viver “melhor”, a regra é quebrada e o argumento do equilíbrio vai por água abaixo. Ou seja: é impossível prescrever equilíbrio em uma sociedade adoecida e em um contexto que assedia esse equilíbrio e testa o tempo todo a capacidade de um indivíduo absolutamente fragilizado de alcançá-lo. Ao fim, essa pessoa é responsabilizada e penalizada por não ser capaz de equilíbrio em uma sociedade desequilibrada.
O argumento central do filme é a “melhor versão de si”, em busca da qual todos nós estaríamos sempre. Essa é a razão que leva as pessoas a cederem à substância. Curioso é que a melhor versão de si – pelo menos em relação a dois personagens com os quais temos contato na trama – são versões mais jovens e com corpos perfeitos. A protagonista não está infeliz com a sua vida. Ela está infeliz com seu corpo. A melhor versão dela é uma versão de corpo “perfeito”, dócil e meiga.
É marcante a cena em que ela estava linda se arrumando para um encontro e, ao se comparar com sua outra versão, se percebe imediatamente pior. Uma visão distorcida de si, que a cena sutilmente reproduz e nos conduz a uma percepção como se estivéssemos tendo a mesma visão da personagem. Os mais atentos se dão conta desse jogo de “descontinuidade”.
Somente esse ponto daria um belíssimo debate sobre a imagem da mulher, a necessidade do corpo liso – lembrei da pesquisa de um amigo querido, Rodrigo Daniel Sanches – e tudo que os corpos femininos atravessam de violência nesse mundo (desde as pequenas faltas de sensibilidade e desatenção que o filme narra até os condicionamentos e procedimentos mirabolantes para manterem-se “jovens” e palatáveis à audiência até o limite do ageísmo).
Mas voltando à temática do tempo, também é sobre aceleracão a ideia de confiança irrestrita em soluções milagrosas das quais não temos notícias científicas sobre a eficácia. A personagem injeta no corpo uma substância de cujos possíveis efeitos colaterais ela não tem conhecimento (como eu disse, o filme é tão caricato que é super real). Diante da promessa milagrosa de encontrar “a melhor versão de si”, ela se curva e aceita integrar a experiência sem pensar nas consequências (que conhece tardiamente, depois que o processo já é irreversível). Curioso aqui é que existe uma aceleração do ponto de vista de uma solução fácil, uma receita mágica e milagrosa que resolveria todos os problemas da personagem. Mas também existe o tempo da simultaneidade.
As personagens são uma só, se alternam em seu desempenho (enquanto uma parte está ativa, a outra está adormecida se “regenerando”, nas palavras do próprio filme) e nos únicos momentos do filme em que elas coexistem ativas de forma síncrona, estas são cenas sobre morte e degradação. O tempo da sincronicidade entre todas as nossas “versões” é um tempo de destruição, quando a regra do equilíbrio é infringida? Seriam estas versões passíveis de coexistência?
A substância é um filme sobre o lugar do corpo da mulher na nossa sociedade, sobre etarismo e ageísmo e sobre os tempos. Mas fala sobretudo da fantástica fábrica de soluções milagrosas aceleradas que o capitalismo cria para “curar individualmente” doenças que ele mesmo gera sistemicamente. Perverso.
Os efeitos são viscerais, sanguíneos e respingam para todo mundo no final. Não existe outra melhor versão de si possível, uma vez que se acredita que se pode alcançá-la dessa forma.