A IA não vai liberar tempo para o que importa

A IA não vai liberar tempo para o que importa

7 de fevereiro de 2025 Off Por michelleprazeres

Desculpem ser a chata que dá esta notícia, mas vamos usar IA para sermos mais produtivos. Precisamos mesmo disso?

Leia o artigo em meu LinkedIn.

Do ponto de vista da alocação temporal (e que fique aqui evidente que eu não opero com a lógica do tempo como recurso; pelo contrário – todo meu trabalho tem sido mostrar que esta lógica está por trás da exaustão que vivemos), pode ser que ela nos “ajude” com tarefas operacionais? Talvez. Tenho dúvidas. E parece que ainda precisamos de muito “treino” e de muito conteúdo de qualidade para que isso aconteça.

No entanto, em um universo povoado de desinformação, alimentando por excesso e potencializado por forças econômicas e políticas não reguladas, por que estamos enaltecendo a capacidade destes dispositivos criando um ambiente que normaliza e normatiza seu uso, sem sabermos direito o que está por trás disso? (Ou será que sabemos, mas estamos fazendo “vista grossa”?).

Quando o whatsapp lançou a ferramenta de aceleração de áudio, eu escrevi um texto falando que este dispositivo era um sintoma de que estamos doentes de velocidade. Me acharam uma chata exagerada (ok, eu sou mesmo). Depois de um tempo, estamos constatando que os aparatos tecnológicos contrabandeiam a velocidade para onde vão. Tem muita gente que me diz “eu não tenho mais paciência com as pessoas, porque elas falam em veloicdade x1”. Isso acontece, porque a velocidade está instalada em nos mecanismos mais profundos destes dispositivos: os mecanismos culturais. Uma “solução” ofertada pelo mercado está em sintonia com as “demandas latentes” na sociedade e atende a estas demandas; outras vezes, estas soluções geram demandas.

No caso do botão de aceleração, aquilo que parecia uma escolha individual (“se eu não quiser, eu não acelero”), muito rapidamente, se converteu em um hábito (“comecei a acelerar e não consigo mais ouvir áudios se não for de forma acelerada”) e, na sequência, se converteu em regra (“quem não acelera, está por fora ou ficou menos produtivo”). Quando uma suposta escolha vira hábito e depois regra, ela se converte em violência, na medida em que: deixa para trás quem não segue esta regra; e incide nas subjetividades das pessoas, fazendo com que fiquemos menos tolerantes ao “lento” (que, na verdade, é o ritmo das coisas).

Passamos a acelerar tudo, até obras de arte (tem gente que ouve música e assiste a filmes acelerando). E isso incide na nossa condição de possibilidade de escutar o Outro, de estar disponível, de cultivar atenção e presença, e tudo isso é necessário e imprescindível ao laço social e ao comum. Aos poucos, esta velocidade vai erodindo nossa humanidade. Vai nos tornando máquinas. Vai nos treinando para o tempo anestésico, automático e ininterrupto 24/7 da aceleração. O tempo “ideal” do projeto de trabalho, consumo e tecnologia que é a sociedade do cansaço.

O que está acontecendo com a IA é um processo muito parecido ao que aconteceu com o mecanismo de aceleração dos áudios. Parece uma solução técnica que vai facilitar a nossa vida, mas ela contrabandeia velocidade.

Estamos enaltecendo uma solução tecnológica, “comprando” um discurso aurático e sem pensar criticamente nos usos, nas consequências, nos discursos promotores destas soluções e nos valores que elas “contrabandeiam” (e a velocidade é um deles).

Vamos usar IA para sermos mais produtivos. Precisamos disso?

Por trás da IA, está o discurso das empresas de tecnologia, de que a tecnologia é o progresso.

Por trás da IA, está a ideia de que as tecnologias podem “nos salvar”.

Por trás da IA, está a ideia de ela vai nos ajudar a ser mais produtivos (gente, precisamos mesmo disso?).

Por trás da IA, está a ideia de que uma máquina pode ser inteligente (este é um debate filosófico, no qual entrarei em algum momento, mas antecipo minha defesa de que só existe inteligência na natureza, portanto, a quem interessa que chamemos processos de automação maquínica de inteligência?)

Por trás da IA, está uma ideia de desenvolvimento, avanço e progresso que nos trouxe até aqui (e, convenhamos, sabemos que deu errado e precisamos voltar vinte casas).

Por trás da IA, está a aceleração.

Por trás da IA, está o tempo da máquina se sobrepondo ao tempo humano.

Será que é possível usar a IA para processos humanizadores?

Será que é possível modificar a lógica da IA para que ela trabalhe para a regeneração do planeta?

Será que é possível desenvolver IAs que apoiem a construção de uma vida melhor, pautadas pela desaceleração e não pela hiperprodutividade?

Me ajudem a acreditar, me dando bons argumentos e exemplos? É um pedido genuíno. Quero muito alimentar minha pesquisa com estas possibilidades, se elas existem.