
Justiça temporal: a revolução necessária num mundo cada vez mais acelerado
Entrevista concedida para o Spray de Pimenta, newsletter de Cassio Aoqui no LinkedIn. Reproduzido na íntegra abaixo.
Nesta conversa leve, profunda e cheia de provocações essenciais, Michelle Prazeres, fundadora do Instituto Desacelera, nos convida a refletir sobre nossa relação com o tempo, o produtivismo e as contradições que enfrentamos diariamente. De forma afetuosa e corajosa, Michelle expõe os desafios que enfrentamos ao tentar viver em coerência com nossos valores em um mundo acelerado, e nos traz caminhos possíveis para regenerar o tempo, cuidar das nossas relações e resistir coletivamente.
Confira a seguir a terceira da série de entrevistas aqui no Spray de Pimenta com pessoas que me inspiram e ajudam a oxigenar minhas ideias, saberes e práticas:
Desaceleração e o caminho transversal
Sobre a frase de Bayo Akomolafe: “os tempos são urgentes; vamos desacelerar”, especialmente sobre desacelerar transversalmente, em oposição a simplesmente reduzir a velocidade no caminho hegemônico ocidental e capitalista.
Michelle Prazeres: Quando comecei a falar de desaceleração em 2016, o objetivo era trazer o movimento slow para o contexto brasileiro e discutir a desaceleração de forma coletiva e não apenas individual, justamente por conta das desigualdades estruturais. Não adianta prescrever a desaceleração individualmente se as pessoas vivem em contextos que não permitem isso. Com a pandemia, surgiu uma reflexão inicial sobre como usamos nosso tempo, mas rapidamente isso se perdeu com uma nova onda de produtividade, como se tivéssemos que compensar o tempo parado. Agora entendo que não basta desacelerar simplesmente; precisamos regenerar, reparar os danos causados ao planeta, não apenas diminuir o ritmo. A solução não é apenas reduzir a velocidade no caminho atual, mas mudar radicalmente nossa rota, reparando os danos já causados, olhando para a natureza e nos reconectando com ela de maneira profunda e coletiva.
“Minha vida não é lenta, mas busco permanentemente lembrar que desacelerar é estar vigilante às escolhas que faço diariamente. É um exercício constante, não um estado fixo.”
Linearidade do tempo no Ocidente capitalista
Sobre o impacto da visão linear e progressista do tempo, típica do capitalismo ocidental, contrapondo-a à visão cíclica presente em culturas indígenas, africanas e asiáticas.
Michelle: O capitalismo ocidental ensina a ver o tempo como recurso escasso, algo mensurável e controlável, que gera ansiedade, culpa, burnout e uma busca constante por produtividade e desempenho. Essa visão linear, progressiva, baseada em Cronos, ignora totalmente a diversidade temporal e cultural. Nas culturas tradicionais, tempo é uma experiência fluida, livre e não algo que se mede ou se usa. Ao tentarmos controlar o tempo, estamos alimentando injustiças e desigualdades sociais, raciais e de gênero, pois o tempo se torna uma membrana adicional que reforça essas injustiças. É necessário repensar essa lógica de forma urgente, adotando uma visão cíclica e regenerativa do tempo, valorizando aprendizados, ciclos, pausas e a diversidade temporal.
“Desacelerar no mesmo caminho é apenas adiar o fim do mundo. Precisamos regenerar, reparar o que já fizemos de errado.”
IA, tempo e produtivismo
Discutimos como a inteligência artificial, mesmo prometendo liberar nosso tempo, pode acabar aprofundando ainda mais a cultura da aceleração e do produtivismo.
Michelle: A tecnologia sempre chega com o discurso de facilitar a vida, liberar tempo para o que realmente importa, como o descanso ou o convívio familiar. Porém, o que percebo é que raramente esse tempo liberado é de fato utilizado para descanso ou lazer. Frequentemente, acabamos preenchendo o tempo liberado com mais tarefas produtivas. Vimos isso claramente durante a pandemia: a promessa de liberar tempo rapidamente se transformou em mais trabalho, mais produtividade, mais exaustão. Um exemplo prático foi o botão de acelerar áudios—ele surgiu com a promessa de que poderíamos poupar tempo, mas o resultado real é que ficamos impacientes com quem fala em velocidade normal. Perdemos a capacidade de ouvir o ritmo do outro.
Agora, com a inteligência artificial, o mesmo fenômeno se repete. Estamos vendo um deslumbramento generalizado, especialmente no campo social, sem uma reflexão crítica suficiente sobre os riscos envolvidos. As organizações sociais começam a adotar ferramentas de IA não porque entendem o potencial real delas, mas porque financiadores sinalizam interesse. Com isso, corremos o risco de usar a tecnologia de maneira completamente acrítica e reproduzir ainda mais essa lógica aceleradora.
Acho que precisamos discutir a IA numa outra chave. A pergunta deveria ser: como podemos usar a inteligência artificial não para produzir mais, mas para promover uma real justiça temporal? Isso sim seria revolucionário. A IA poderia abrir espaços concretos para regeneração, cuidado, tempo de lazer, tempo para relações afetivas. Se não for assim, a IA será apenas mais uma ferramenta a serviço da aceleração e do adoecimento, em vez de ser uma ferramenta realmente libertadora e regenerativa.
Consultoria e a contradição entre princípios e necessidades financeiras
Sobre cobrança que nós, pessoas consultoras no campo social, enfrentamos para manter coerência com nossos princípios, mesmo precisando “pagar boletos”.
Michelle: Todos nós vivemos sentados na contradição. Sou uma mulher, mãe, não sou herdeira, e vivo numa cidade cara como São Paulo, o que significa que preciso trabalhar muito para sustentar minha vida e dos meus filhos. Minha vida não é necessariamente lenta, e frequentemente me vejo no dilema entre desacelerar e atender demandas financeiras. Meu desafio constante é o exercício de vigilância sobre minhas escolhas cotidianas, perguntando-me sempre: por que estou fazendo isso? Preciso correr tanto? Assim, tento me manter coerente com meus princípios e fazer escolhas mais conscientes, admitindo as contradições e acolhendo a minha própria humanidade e limitações.
“A visão ocidental do tempo como recurso gera injustiça temporal e reproduz desigualdades já existentes.”
Limitações e contradições do campo social
Sobre as limitações das abordagens filantrópicas tradicionais quanto ao bem-estar.
Michelle: Uma das grandes perversidades do campo social é a reprodução de lógicas corporativas tóxicas. As organizações frequentemente justificam baixos salários e práticas adoecedoras usando o argumento do propósito social, o que é ainda mais perverso do que no mundo corporativo, onde pelo menos existe transparência sobre o que está em jogo. Essa lógica precariza o setor, gera burnout e adoecimento organizacional, e normaliza práticas exploratórias. Precisamos denunciar essas contradições publicamente para que a filantropia e seus financiadores revejam suas práticas e garantam recursos para desenvolvimento institucional e cuidado real das equipes.
“Se a inteligência artificial servir apenas para aumentar nossa produtividade, ela será mais um motor de aceleração. Precisamos usá-la para promover justiça temporal.”
Diversidade temporal e desigualdade
Sobre como a cultura da aceleração afeta grupos sociais distintos.
Michelle: Vivemos sob uma cronomeritocracia que é profundamente injusta. Não é verdade que todos têm as mesmas 24 horas. Uma mulher negra, mãe, moradora da periferia não dispõe do mesmo tempo que um homem branco da elite financeira. As políticas temporais deveriam reparar essa desigualdade, reconhecendo o tempo de cuidado não remunerado, promovendo justiça temporal, como licenças menstruais, horários flexíveis e espaços no horário de trabalho para cuidado pessoal e formação. Empresas e organizações precisam considerar que oferecer benefícios (como terapia) não é suficiente se as pessoas não tiverem tempo real para acessá-los.
“No campo social, o propósito não pode justificar baixos salários, burnout e adoecimento. Precisamos parar de romantizar o sofrimento.”
Entre maternidade, carnaval e consultoria
O que Michelle faz na prática para desacelerar entre seus múltiplos papéis.
Michelle: O meu grande hábito para desacelerar é nunca tentar dar conta de tudo sozinha. Sou uma pessoa que constrói redes, ativa comunidades e conta com os afetos ao meu redor. Faço quase tudo acompanhada, o que torna minha vida possível e mais leve. Além disso, busco criar momentos regenerativos, pequenos espaços de ‘desaperreio’, como chamamos na minha terra, em que realmente consigo me desconectar um pouco das demandas e respirar. Desacelerar, na prática, é um exercício constante de vigilância sobre minhas escolhas cotidianas, mantendo uma atitude consciente frente às demandas aceleradas da vida moderna.
+Spray
- Quer conhecer mais sobre o Instituto Desacelera, e seus programas, como o Dia Sem Pressa e 24/7? https://www.desacelera.org.br/
- Gostou do que a Michelle trouxe? Não perca o podcast que ela gravou para a Plataforma Conjunta ao lado da querida Ana Biglione: https://conjunta.org/conteudo/proposito-terceiro-setor/